Fonte: Adoro Cinema
O piloto da série criada por Neil Gaiman é extremamente promissor. O espectador redescobre a origem do universo, tanto pelo prisma do Big Bang quanto pela história de Adão e Eva, ambas sensivelmente diferentes do que conhecemos.
Com narração de ninguém menos que Deus (Frances McDormand, deliciando-se com o sarcasmo do texto), o roteiro se encarrega de atravessar os principais momentos da História enquanto nos apresenta aos protagonistas, o anjo Aziraphale (Michael Sheen) e o demônio Crowley (David Tennant). É divertidíssimo, e um tanto malicioso, mexer com cânones da doutrina cristã, incluindo a crucificação, o nascimento de Jesus e outros, com um prazer tão juvenil.
O melhor aspecto de Good Omens se encontra, sem dúvida, na qualidade do texto e do elenco. Tennant e Sheen são dois excelentes atores, ambos confortáveis com este tipo de humor autodepreciativo, além do fato de serem personagens interpretando personagens – tanto Aziraphale quanto Crowley encarnam outras figuras de acordo com a necessidade. Existe um aspecto lúdico não muito diferente de Desventuras em Série. Pelas personalidades inesperadas – o aspecto rock’n’roll do demônio, a figura de “bom aluno” do anjo -, eles transparecem as pequenas falhas que tornam a dupla central mais passível de identificação.
Visualmente, o projeto também entrega o que promete. Os efeitos visuais são simples, porém funcionais, jamais buscando um realismo excessivo. Afinal, estamos numa fantasia humorística que não se leva a sério. Por isso, os cenários, os figurinos extravagantes e as atuações exageradas de Miranda Richardson e Jon Hamm se encaixam na proposta dos criadores.
No entanto, a partir do segundo episódio, Good Omens começa a transparecer as armadilhas de ter o criador do livro e dos personagens como showrunner. Gaiman confessou, em entrevista ao AdoroCinema, ter mantido certas passagens porque lhe agradavam, e porque acredita que o falecido Terry Prachett, co-criador da obra, teria gostado.
Isso resulta em diversos atalhos e saltos temporais que apenas confundem a trama sem desenvolvê-la: passada a apresentação enxuta do pacto ente Aziraphale e Crowley no primeiro episódio, e do nascimento do Anticristo, o segundo e terceiro episódios fazem diversas idas e vindas pela História – na Inquisição Espanhola, na França pré-industrial, na Inglaterra do começo do século XX – apenas para ver os protagonistas se provocando.
Durante certo tempo, a série quase esquece sua linha central ao se focar demais em Pulsifer (Jack Whitehall) e Anathema (Adria Arjona) ao invés dos heróis. É claro que ambos serão importantíssimos na batalha contra o fim do mundo, mas a montagem demonstra dificuldade em equilibrar todos os seus núcleos.
Além disso, Good Omens não responde a algumas perguntas fundamentais: se o anjo e o demônio vivem há 6000 anos na Terra, como não travaram contato profundo com nenhum ser humano? De que maneira eles mantêm secreta esta amizade, se Deus tudo vê? Por que a série decide apresentar seus Cavaleiros do Apocalipse um por episódio, ao invés do grupo reunido? Por que se atardar na cena sobre Shakespeare, que não contribui em nada à trama? Talvez essas questões sejam facilmente respondidas pelo livro, mas não se resolvem em imagens.
Julgando pelos três primeiros episódios – a metade da temporada -, o projeto se sobressai pelo humor afiado e pelo prazer evidente de seus atores em cena. No entanto, a narrativa precisa se estruturar melhor para entregar tudo o que se espera de uma obra de Neil Gaiman. É provável que as pontas soltas sejam costuradas rumo à conclusão, mas os criadores nunca podem perder de vista as necessidades da série em detrimento do apego emocional relacionado a uma ou outra passagem do livro.
Em sua construção fragmentada, Good Omens ao menos subverte a linearidade das minisséries clássicas, evoluindo como numa sucessão livre de esquetes. São tantas viagens no tempo, e entre personagens, que quase se esquece da proximidade do Apocalipse. Resta torcer para que os fãs de Gaiman e novatos nesta jornada aprovem tantas licenças poéticas com a História, com o cristianismo e com a narrativa clássica de cinema.